Rodas de Carimbó contam uma parte da existência - e da
resistência - cultural no Distrito de Icoaraci, no Pará, onde está localizado o
Espaço Cultural Coisas de Negro. O Tambor de Crioula, do Maranhão, já foi
reconhecido pelo Ministério da Cultura como patrimônio imaterial do Brasil.
Agora, um coletivo realiza uma campanha para a concessão da mesma chancela ao
carimbó.
A arte milenar da cerâmica marajoara produzida no bairro do
Paracuri proporcionou uma visibilidade além rio-mar ao distrito de Icoaraci. Em
tupi-guarani o nome significa "Mãe de todas as águas". Assim como
outras regiões da cidade de Belém, a baía do Guajará circunda o lugar, ainda
repleto de furos, igarapés e rios. O rio Paracuri é um deles, assim como o
Maguari, o igarapé Livramento, e tantos outros, de onde é retirada a argila -
cada vez mais rara - para a produção da cerâmica.
É tempo de chuva na Amazônia. A ausência de saneamento básico impede o acesso
dos consumidores do artesanato até o centro produtor. Limite que é sanado com
quiosques de venda na orla central do bairro. Além da arte marajoara e tapajônica,
músicos de samba, rock, pop e carimbó ajudam a compor a cena cultural do lugar.
Vinte quilômetros separam o centro da capital do Pará do lugar. A esburacada e
mal sinalizada rodovia Augusto Montenegro é a principal via que leva ao
bucólico logradouro apelidado de “Vila Sorriso”. Edificações ligadas à Igreja
Católica marcam o espaço da orla, repleta de restaurantes e vendedores de coco.
Já a abandonada Biblioteca Municipal Avertano Rocha é um resquício dos
gloriosos anos do ciclo da borracha. O chalé integra o portfólio da arquitetura
do século XIX do município.
O hiato social tem incrementado a violência ao redor. Em novembro de 2011, a
chacina de seis adolescentes sem passagem pela polícia comoveu o distrito.
Alguns suspeitos estão presos. Mas o caso continua uma incógnita.
O cais que recebe a produção de hortifrutigranjeiros e o pescado é o mesmo de
onde é possível embarcar pra o arquipélago do Marajó, e ilhas mais próximas,
como a de Cotijuba, que durante muito tempo abrigou o presídio do Estado. Uma
viagem de menos de sessenta minutos de barco separa o distrito da ilha. A
energia recentemente implantada trouxe mais conforto às pousadas, e incentivou
a especulação imobiliária. No mesmo cais no mês de outubro ocorre a romaria
fluvial que celebra Nossa Senhora de Nazaré.
Após vários processos históricos, desde os tempos das sesmarias, o distrito de
Icoaraci foi instituído juridicamente na década de 1940. Vez em quando alguns
setores do comércio e da política local ensaiam um movimento separatista de
Belém. Enquanto isso não ocorre, na avenida Dr. Lopo de Castro, nº 1081, a cada
domingo, há 13 anos, o Espaço Cultural Coisas de Negro celebra a cultura de
matriz afroindígena com as rodas de carimbó.
A percussão é a coluna dorsal da manifestação de matriz afroindígena. Assim
como o tambor de crioula do Maranhão, três tambores (curimbó) compõem o nipe
percussivo ajudado por maracás. Cabe ao curimbó maior a marcação, enquanto os
dois menores solam. Ao contrário da manifestação maranhense, no carimbó existem
instrumentos de harmonia, como flauta transversal e banjo. Os grupos mais pop´s
agrupam violão ou guitarra e baixo.
Homens e mulheres dançam em movimento circular. Cabe ao homem o galanteio. Na
manifestação maranhense cabe às mulheres a dança, e aos homens a música e o
canto. As vestes são similares. As mulheres sempre dançam de saia. A camisa de
chitão florido é comum na indumentária dos homens nas duas manifestações.
A matriz rural é o elemento comum das atrações culturais nos dois estados. A região
do Marajó e do Salgado (município de Marapanim em particular) são as
referências de grupos de carimbó no Pará. Já no Maranhão a manifestação é
encontrada nos bairros da periferia de São Luís, e em inúmeras áreas em várias
regiões do estado marcadas por remanescentes de quilombo. Na periferia de
Belém, no bairro da Terra Firme, migrantes maranhenses à Rua dos Pretos
mobilizam-se em torno do tambor de crioula.
Espaço Cultural Coisas de Negro – espaço de (re) existência
Os apêndices da história deixam claro o preconceito e a criminalização das
manifestações culturais de matriz africana. Códigos de posturas de algumas
cidades proibiam as rodas de capoeira e samba. Era coisa de malandro. Para (re)
existir o samba ganhou o abrigo em terreiros de umbanda e candomblé, como no
caso da Tia Ciata e apelou para o sincretismo. A visão obtusa de antes tem sido
oxigenada em dias atuais por alguns segmentos neopentecostais.
Assim como os ancestrais, homens e mulheres negras ou não celebram a cada noite
de domingo o carimbó. A casa do Coisas de Negro é modesta. O sobrado
recentemente passou por uma reforma. A ornamentação faz referência às culturas
africana e amazônica.
A seleção em prêmio do edital de Culturas Populares Mestre Humberto de Maracanã
(cantos de bumba-meu-boi do Maranhão), promovido pelo Ministério da Cultura
realizado em 2008 possibilitou a reforma. O projeto foi contemplado na
categoria Grupos Tradicionais Informais. A iniciativa contou com a ajuda da
jornalista e produtora cultural Luciane Bessa, lembra o proprietário do espaço,
Raimundo Piedade da Silva, mais conhecido como Nego Ray. Um senhor de média
idade de estatura mediana.
O Coisas de Negro – entre o rústico e o haiteck. O espaço cultural apresenta um
ambiente rústico. Peças de cerâmica, raízes de plantas secas, sementes e
fotografias dos grupos de carimbó impressas em lona de caminhão adornam as
paredes com textura de argila.
Nos rituais de domingo, na parede acima do palco filmes sobre cultura popular e
curtas-metragens produzidos no Pará são exibidos. O documentário Salve
Verequete, falecido mestre do carimbó, não deixa de ser exibido. O cineasta
Luiz Arnaldo assina o registro sobre a trajetória de um dos protagonistas da
arte popular do Estado. O negro esguio morreu doente e pobre. Somente no fim da
vida contou com uma ajuda pecuniária da prefeitura de Belém. Para sobreviver
vendia churrasquinho. A sina de Verequete é comum entre os artífices do gênero.
A mesma trilha teve o mestre Bento.
Internet, carimbó e cidadania
Talvez nenhum mestre tenha imaginado que as rodas de carimbó ganhariam o mundo.
Hoje elas são transmitidas ao vivo via internet. O Carimbó.Net também contou
com a participação de Luciane Bessa.O empreendimento que começou no espaço
cultural, hoje é projeto de extensão da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Ele conta com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Pará
(Fapespa), através do Edital Ações Colaborativas para a Cidadania Digital,
lançado em 2009.
A iniciativa proporcionou ao Espaço Coisas de Negro a oportunidade de ministrar
oficinas de confecção e percussão de instrumentos para jovens, além de
trabalhar com software livre e gravação de CD. Os frutos desse projeto podem
ser acessados nas redes sociais.
Nego Ray relembra a experiência que o projeto possibilitou ao visitar uma
comunidade quilombola Laranjituba, localizada no município de Moju, norte do
Estado. “Tivemos a felicidade de gravar a voz de um cidadão de 87 anos de
idade, Mestre Jorge que canta carimbó. Nós levamos todo nosso equipamento de som.
Conseguimos captar o som dele e reproduzimos na hora o CD. Já tínhamos feito a
capa e entregamos para ele,” conta emocionado.
Ray sublinha que o Mestre Jorge ao ouvir a sua música sendo tocada pela
primeira vez parecia criança dançando. A equipe ficou maravilhada com aquilo.
Acompanhando o mestre vendo todo o processo e se ouvindo, foi muito bacana,
arremata.
Coisas de Negro – os primeiros passos
No início o espaço cultural era um bar. O proprietário explica que o local
existe há 21 anos. E que desde o início das rodas de carimbó passou a ser
denominado de espaço cultural. O repertório musical era composto de voz e
violão ao vivo sempre as sextas-feiras. E a execução de vinis.
Ray relata que as rodas de carimbó começaram com a apresentação do grupo ‘Curuperê’.
Ele recorda que um grupo de pessoas ligadas à música o procurou. Eles tinham
interesse em apresentar o trabalho que era voltado ao carimbó. Fui convidado a
participar. E assim começamos a trabalhar em cima do repertório autoral.
A partir daí outros grupos parafolclórico começaram a se apresentar no espaço.
A iniciativa trouxe resultados. Outros locais também começaram a promover as
rodas de carimbó. Até então a divulgação do carimbó era restrita a períodos
festivos. “Antes as apresentações do carimbó ficavam confinadas às festividades
da quadra junina. Com essa nossa atitude de fazer as rodas aos domingos, as
pessoas começaram a aceitar mais o ritmo regional. Hoje a dança aparece até no
horário nobre da televisão, mas foi necessário que alguém, não só a gente, mas
as pessoas que nunca deixaram de acreditar que um dia essa música iria chegar
onde está começando a chegar. Bem como a teimosia dos grandes mestres que não
estão mais aqui” afirma Nego Ray.
Hibridismo cultural é Coisa de Negro
“Não há conflito entre o regional e o ‘de fora’, pelo contrário, há um encontro
que proporciona uma nova expressão cultural. O hibridismo, longe de ser visto
como uma deturpação da cultura popular é considerado enriquecedor das práticas
culturais por esse segmento que conheceu o carimbó por meio do Mundé”.
Esta frase, estampada em lona, ornamenta uma das paredes do Espaço Coisas de
Negro. Quem entra rapidamente percebe que a energia do local congrega diversos
campos culturais. Nego Ray explica, “Uma coisa que a gente percebe aqui é a
mudança de comportamento das pessoas. As que são voltadas para outras
tendências musicais, quando adentram no “Coisas de Negro” começam a se
integrar. As meninas do rock que já vêm aqui e vestem as suas saias.”.
O jornalista Ismael Machado sugeriu ao Nego Ray o projeto Coisas do Rock. Na
época estiveram no palco as bandas, Arcano 19, Cravo Carbono e Norman Bates.
“Retornamos agora, tem um ou dois anos com apresentações de grupos de rock. No
dia 2 de fevereiro teremos The Smiths Cover e Los Hermanos Cover. Além dessa
apresentação, antes teremos no dia primeiro de fevereiro o Buscapé Blues, com
uma apresentação de música autoral” explica Ray.
O espaço cultural sempre esteve aberto a outros ritmos e estilos, mas não é só
o local que congrega outras influências musicais. O grupo de carimbó Mundé
Qultural é prova dessa efervescência contemporânea. Utilizando instrumentos
como a guitarra, o baixo e percuteria, este último criado pelo próprio grupo é
um conjunto de instrumentos como: prato, banjo, alfaia, pandeiro e caixa de
bateria.
O grupo mescla experimentações sonoras envolvendo o popular e o contemporâneo.
Nego Ray fala que eles deram uma nova roupagem à música ‘Moleque do Paracuri’
da banda Novos Camaleões, “Fizemos um arranjo bem legal, uma pitada regional
com uma linguagem rock ‘n roll”. A mesma linha segue o grupo Lauvaite Penoso.
Algo que lembra a turma que envenenou a cena cultural do Recife na década de
1990, isto para não falar de Raul Seixas, Mutantes e a Tropicália.
Hoje, o Espaço Coisas de Negro abriga as mais diversas tendências e
experimentações sonoras. Para Nego Ray a procura das pessoas pelo espaço denota
uma carência de locais para a música autoral. “O que eu vejo hoje no ‘Coisas de
Negro’ era o que um tempo atrás acontecia no teatro Waldemar Henrique. O teatro
abria as portas para que as pessoas pudessem fazer as suas experiências
musicais”.
Trio Chamote – direto da costela do Coisas de Negro
O ensaio começou umas 7hs da noite. A batida leve na baqueta e o contar do “1,
2, 3, e...” marca mais um recomeço da música que está sendo ensaiada. O local é
no Espaço Cultura Coisas de Negro e o celular grava o áudio do ensaio. O ritmo
é o lundu. Também de matriz africana. Ao contrário do carimbó a sonoridade é
marcada pela suavidade e a cadência em pausas leves e fortes marcadas pelo
batuque. No caso é tocado no bumbo da bateria. A dança é um ritual de sedução.
O ambiente ‘Coisas de Negro’ inspira musicalidade e o espaço também contribui
para o surgimento de novas parcerias, a partir de encontros e vivências com
pessoas e grupos musicais plurais, como a diversidade do Trio Chamote.
Composto por Silvio Barbosa (sopro), Luizinho Lins (banjo) e Charles Matos
(bateria), eles utilizam o espaço para ensaiar as cinco músicas já criadas. O
trio irá se apresentar oficialmente no Teatro Waldemar Henrique na abertura do
show do guitarrista Pio Lobato. Data a confirmar.
Chamote e Coisas de Negro
O Trio ainda é novo, os músicos é que são velhos conhecidos do ambiente, desde
os tempos do nascimento das rodas de carimbó. Todos moram em Icoaraci. O nome
do Trio vem de um dos processos de produção artesanal da cerâmica. Chamote é o
nome dado aos restos de cacos de peças antigas da cerâmica marajoara, que são
aproveitadas e misturadas ao barro natural para a criação de novas peças.
É desta realidade cotidiana e de vivências que os músicos criaram o estilo do
trio. Charles, autodidata com 22 anos entre baquetas e pratos explica o som que
produzem: “O Chamote surgiu de um sonho antigo de trabalhar a música regional
folclórica inserindo uma roupagem contemporânea, com efeitos sonoros e
linguagem jazzística, que consiste na improvisação musical”.
Luizinho explica que o Espaço Coisas de Negro também ajudou a construir o
Chamote “Aqui a gente busca conceito, tem as rodas de carimbó, todo esse
ambiente ajuda a compor”.
A construção do conceito musical do Chamote partiu de algumas coincidências.
Todos os integrantes possuem pesquisas distintas sobre os instrumentos que
tocam e ritmos amazônicos, contempladas com bolsa de estudo no Instituto de
Artes do Pará (IAP). O horizonte de trabalhar com ritmos regionais mesclando
uma pegada mais contemporânea foi o que os uniu.
O espaço Coisas de Negro foi determinante para o encontro e a realização do
projeto, como afirma Silvio, “Talvez se não fosse o ‘Coisas de Negro’ o Chamote
não iria se formar. Os ensaios no espaço, a convivência nas rodas de carimbó e
a troca de impressões com o Ray ajudaram a cimentar a ideia” pondera o músico.
Luizinho confirma: “Se eu estivesse em outro espaço, talvez eu estaria tocando
com outro grupo, e só tocando, não estaria fazendo experimentação sonora”.
Para o artista, a relação que se dá no espaço é de solidariedade, “Quando o Ray
cede o espaço para gente ensaiar não é necessário uma assinatura em papel, e
toda essa formalidade, as relações são baseadas no aperto de mão”.
Cultura popular como patrimônio imaterial do Brasil
O Tambor de Crioula, o primo do Maranhão já foi reconhecido pelo Ministério da
Cultura como patrimônio imaterial do Brasil. No Pará um coletivo realiza uma
campanha para a concessão da mesma chancela ao carimbó. Autores e intelectuais
atuam em frentes diferentes.
Uns tratam da burocracia, enquanto outros organizam memorial sobre os grupos e
nomes relevantes de mestres do ritmo, onde flutuam Verequete, Lucindo, Dico,
Cizico e Bento, entre outros. E organizam eventos dentro e fora do estado.
A cada domingo, além do Coisas de Negro, os ancestrais são festejados por
percussionistas nas manhãs da Praça da República, no Centro de Belém. Ali entre
mangueiras, e próximo ao cheio de pompa e circunstâncias Teatro da Paz, não
raro os músicos entoam a canção mais popular do gênero: “Chama Verequete!
Velejar. Velejar”.
*Lilian Campelo é jornalista. A folkcomunicação foi o tema de seu trabalho
de conclusão de curso. Rogério Almeida é autor do livro "Pororoca pequena
- marolinhas sobre a(s) Amazônia (s) de cá".
Fotos: Rogério Almeida
Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21571